27 de maio de 2017

Relembrar 7 de Setembro de 1974 por Carlos Branco



Recebi do meu amigo e camarada de há trinta anos, Carlos Branco, este testemunho vivencial do 7 de Setembro de 1974 em Moçambique.

«Quando chegou a Vila Pery a notícia de que havia ocorrido uma revolução/golpe de estado em Portugal, de um modo geral e ingenuamente os portugueses ali residentes acolheram-na com esperança. Depois de mais de uma década de guerra que sabíamos estar a ser deliberadamente perdida pensámos que o novo governo iria alterar estratégias no sentido de inverter o processo. Durante mais de 13 anos de guerra, assistimos a um facto: de vitória em vitória sobre os "turras" a área abrangida pela guerra, ao início confinada ao norte de Cabo Delgado e Niassa, tinha chegado depois a Tete, onde apenas o perímetro de Cabora Bassa era zona segura, e em 1974 o corredor da Beira, onde eu residia, era já zona de guerra, com ataques a quintas, camionetas de passageiros, comboios, automotoras e automóveis particulares. Havia uma explicação e era muito simples: em zona de guerra, a chamada "zona 100%", os oficiais do quadro recebiam o dobro do vencimento, à laia de subsídio de risco. Logo, quanto maior fosse a área afectada pelo conflito maior número de militares beneficiaria financeiramente. Podem tirar as vossas conclusões. Podem também perceber a esperança que o 25 de Abril levou aos portugueses em Moçambique. E curiosamente, estava Spínola no epicentro do terramoto político, eu próprio vi no aeroporto da Beira, que era anexo à Base Aérea 10 da FAP, um Boeing de carga a descarregar várias peças de artilharia e 2 F-86 Sabre (caças a jacto) desmontados que iriam reforçar o dispositivo militar regional.


Com o tempo e o crescente poder da esquerda no aparelho político as nossas esperanças foram goradas. As tropas portuguesas foram cedendo lugar aos guerrilheiros da frelimo em todo o território.
O sonho renasceu a 7 de Setembro de 1974, quando ao mesmo tempo em que políticos de segunda categoria entregavam em Lusaka e sem condições o poder a um bando de guerrilheiros maltrapilhos e derrotados, sem formação política e liderados por um boçal de nome Machel, um grupo de Portugueses cercavam e ocupavam o Rádio Clube de Moçambique em Lourenço Marques. Durante algumas horas pensámos que poderíamos fazer surgir ali um modelo semelhante ao da Rodésia e com apoio da África do Sul. Enquanto em LM os nossos compatriotas ocupavam a estação de rádio, em Vila Pery eu e alguns amigos dirigimo-nos à emissora local, também do RCM, no sentido de o ocuparmos e nos solidarizarmos. Aí chegados deparámo-nos com um destacamento do exército português que controlava já o emissor.

Em poucas horas o sonho desfeito de um Moçambique que já tínhamos idealizado com base no modelo rodesiano de Ian Smith e aliado do Ocidente.

Até 1976, altura em que vim para a MINHA TERRA, corri perigo de vida por algumas vezes. Uma vez por não ter o BI, outra porque não identifiquei um piquete militar na estrada. De ambas as vezes tive AK-47 apontadas a mim a menos de dois metros. Por ter escrito no Diário de Moçambique críticas a Samora Machel enquanto político, tive o meu nome na lista negra da PIC (Polícia de Investigação Criminal) e apenas a protecção de um colega de trabalho que era informador deles evitou que eu fosse detido.

Mas o espaço temporal entre a Setembrada, nome que chamámos à tentativa falhada de tomada do poder de 7 de Setembro e ou Agosto de 1976, altura em que me libertei finalmente a asfixia do regime de Machel foi fértil em provações.

Durante todo esse tempo, que permaneci entre Vila Pery e a Beira, vi os meus amigos partirem um a um para Portugal. A mesa do café, a roda dos amigos foi-se esvaziando. O modus vivendi a que estávamos acostumados foi-se esboroando, foi-se adaptando a um ambiente em que dominava o medo. O 7 de Setembro teve como consequência o massacre de alguns portugueses, assassinados pela populaça sedenta de uma vingança que nem ela mesma compreendia bem. Um ódio artificialmente alimentado pela classe política dominante, quer em Moçambique quer em Portugal. Esse massacre foi escondido, bem como o massacre que ocorreu mais tarde, julgo que em Outubro.

Nessa altura estavam a minha Mãe e a minha Irmã em Lourenço Marques e testemunharam o terror que assolou os arredores da cidade, escapando por minutos a uma morte horrorosa, em que outros foram retalhados à catanada e à machadada, muitas mulheres violadas, portugueses empalados e castrados e pelo menos um caso de uma grávida assassinada a quem uma turba enfurecida abriu o ventre e esmagou o feto. Por essa altura, estando o exército Português em retirada e já desarmado, foi a própria Frelimo que restabeleceu a ordem. A minha Mãe e a minha Irmã, a caminho do aeroporto de Lourenço Marques, em coluna escoltada por militares portugueses e da Frelimo, viram vários automóveis incendiados ao longo das ruas. Dentro de alguns desses carros conseguiram distinguir corpos carbonizados, pois a turba incendiava as viaturas e em seguida cercava-as e com a ajuda de paus, chuços, catanas e machados impedia os ocupantes de fugir das chamas. 

Tudo isto foi silenciado em Portugal, onde o regime propagandeava as virtudes do Acordo de Lusaka e as boas condições de vida dos Portugueses que haviam ficado em Moçambique. Em Janeiro de 1975, uma vez que eu tinha nascido em Moçambique foi-me dado o prazo de 6 meses para optar por uma nacionalidade: ou escolhia ser português ou moçambicano. Em Junho comuniquei a minha opção por ser Português e foi-me dado o prazo de 3 meses para abandonar o país. Caso permanecesse ali, no fim de Setembro seria detido e enviado para um "campo de reeducação".

Posso afirmar que quando no dia 23 de Agosto o avião que me trazia para Portugal descolou da Beira tive uma sensação indescritível de alívio.

Resta alguma nostalgia pela terra que me viu nascer e onde vivi quase até aos 22 anos. Mas tenho plena consciência de que Moçambique não é nem será nunca mais essa terra. Porque uma terra não é só o chão que se pisa, é também a sociedade civil que ali se construiu e que se destruiu de uma forma irreversível. Não sou dominado por uma nostalgia destrutiva e saudosista do tempo que passou.

Aqueles que vivem presos ao sonho de voltarem para África e reconstruírem aquele universo que passou, desenganem-se. Espera-os um mundo diferente, seja em Moçambique ou em Angola... e podem gostar ou não... mas é diferente.