15 de janeiro de 2017

Fim da longa guerra e descolonização (Fernando Madail)



Acordos. Treze anos após Salazar ter ordenado "para Angola, rapidamente e em força", a paz chegava às três frentes de batalha. Mário Soares não pensou nas independências de Cabo Verde, São Tomé, Timor. E distinguiu o acolhimento dado a 800 mil retornados e aos pieds noirs franceses

"O senhor é que não me dá lições de patriotismo a mim!", gritava Mário Soares a Spínola na véspera da reunião com os dirigentes do PAIGC, em Argel, a 15 de junho de 1974, como revelou Almeida Santos (Quase Memórias, 2.º vol.). Naquela fase, as teses sobre o futuro das colónias ainda provocava choques entre as várias fações que se digladiavam após a Revolução do 25 de Abril. O então ministro dos Negócios Estrangeiros tentava conseguir a paz e a autodeterminação com os movimentos de libertação, mas as declarações de Spínola e dos que pretendiam um processo mais lento ou o caminho do federalismo chocavam com a realidade: a extrema-esquerda tinha lançado a palavra de ordem "nem mais um soldado para as colónias" e, nos teatros de guerra, os militares portugueses já confraternizavam com aqueles que, antes, eram os "turras".


Na cronologia das negociações merecem destaque o encontro particular com o angolano Agostinho Neto (MPLA) em Bruxelas, logo a 2 de maio; a ida a Dacar, a 16 de maio (primeiro dia de Soares como ministro), no avião particular disponibilizado pelo presidente senegalês Léopold Senghor para o encontro com o cabo-verdiano Aristides Pereira (PAIGC), "onde se deu o primeiro passo no sentido da descolonização" (Um Político Assume-se); o espontâneo "abraço de Lusaka", sob os auspícios do presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, com o moçambicano Samora Machel (FRELIMO), a 6 de junho; e os encontros com os angolanos Jonas Savimbi (UNITA) e Holden Roberto (FNLA) em Kinshasa, a 26 de novembro.

"Esperava, confesso, que no regresso de Dacar, tendo assinado o cessar-fogo [na Guiné-Bissau], a viagem fosse saudada no Governo e desenvolvida nos jornais. Mas não. O silêncio - ou quase - foi a regra. Não agradou ao PCP nem a parte do MFA, por ser eu e, consequentemente, o PS a aparecer como pioneiro da descolonização" (Um Político Assume-se). Mais tarde, Marcello Caetano comentaria a Veríssimo Serrão que, neste encontro, "a delegação portuguesa [era] chefiada por Mário Soares, velho amigo e companheiro dos terroristas"(Confidências do Exílio).

Sobre Moçambique, Almeida Santos contou, no documentário de Mário Barroso Memórias do Portugal Futuro, que Soares "teve um primeiro gesto que marcou um pouco o processo, que foi o encontro com Samora Machel [não se conheciam]. Na altura, isso (...) surpreendeu toda a gente. Mas não só o encontro - foi o abraço. Dois países que ainda estavam em guerra. Uma guerra de dez anos, em que tinha morrido muita gente. Os dois dirigentes dão um abraço público, filmado, que correu mundo." Exilado no Rio de Janeiro, Marcello Caetano tinha uma leitura inversa e escrevia que este acordo foi "negociado entre abraços do sinistro Mário Soares aos assassinos de portugueses" (idem).

Um processo rápido. "Depois de uma série de oradores (...) [num comício no Porto], é a vez de Mário Soares, que demonstra os seus dons de orador", escreveu Jean Daniel, a 4 de novembro de 1974. "Desafio qualquer pessoa a não sentir um arrepio ao ouvir um discurso que comece assim: "Camaradas (desde logo, o timbre impõe um silêncio que o orador aproveita plenamente), camaradas (silêncio de novo), neste momento (silêncio), pela primeira vez desde há 13 anos, não há balas disparadas por espingardas em nenhum território onde há forças portuguesas. Acabamos de receber a confirmação do cessar-fogo em Angola" (Fotobiografia). Tantos anos após a frase de Salazar "para Angola, rapidamente e em força", e de oito mil portugueses e um sem-número de africanos mortos, a paz chegava aos três teatros de guerra.

"Eu tenho responsabilidades no arranque da descolonização, que não enjeito", assumirá Soares. "Mas não tenho nenhumas na aplicação dos tratados de independência. Nessa altura, não tive qualquer responsabilidade efetiva na matéria" (O Futuro Será o Socialismo Democrático). No fundo, "nunca me passou pela cabeça que se fizesse uma descolonização com a rapidez com que se concretizou. (...) Muito menos em Cabo Verde, em São Tomé ou em Timor" (Ditadura e Revolução). O pior foi Angola. "Quando cheguei [ao Alvor, em janeiro de 1975], percebi que os dados estavam lançados e o jogo, praticamente, feito. Eu trabalhara muito para a realização daquela conferência, falara com Agostinho Neto, com Holden Roberto e com Jonas Savimbi. Era necessário pô-los em contacto para, em conjunto, procurarmos uma solução." Mas, nesse dia, "percebi que a visão dominante, naquela sala, era pró-MPLA. Os outros dois movimentos deixaram-se colocar, talvez pela força inelutável das coisas, numa posição secundária" (idem). Após assinarem o acordo (e antes da independência) começa a guerra civil e "Angola entrou numa espiral de violência" (Um Político Assume-se).

Em O 25 de Abril Visto da História, livro de 1976, José António Saraiva recapitulava: "Temos assim que o PS começa, diretamente, através do seu secretário-geral Mário Soares, por desempenhar um papel preponderante na descolonização, é depois ultrapassado e acaba - claramente já marginalizado - a condenar de modo explícito a forma como decorria a evolução dos acontecimentos em Angola e a posição da parte portuguesa" - a alcunha do alto-comissário Rosa Coutinho seria "o almirante vermelho".

"Você vendeu Angola e Moçambique!", foram-lhe gritando depois os retornados, embora Soares lembrasse sempre que foi no seu primeiro governo que se fez "um esforço extraordinário, na altura em que o País recebia cinco mil refugiados diários, para minorar a situação dos desalojados e o impacto negativo que poderiam ter na sociedade portuguesa" (O Futuro Será o Socialismo Democrático) - e concluía, nesse ano de 1979, que já não havia "um problema de retornados". Décadas depois, mantinha a mesma leitura. "A descolonização - feita num ano e meio - foi das políticas mais difíceis e controversas do pós-Revolução dos Cravos. Portugal recebeu, em poucos meses, cerca de oitocentos mil retornados, regressados à pressa das colónias, onde deixaram tudo: profissões, haveres, empresas, esperanças de vida. Mas não houve aqui um fenómeno correspondente ao dos pieds noirs franceses, regressados da Argélia, que tantas perturbações sociopolíticas causaram. Os portugueses que regressaram foram reintegrados, com relativa facilidade" (Um Político Assume-se).


Fonte: Diário de Notícias, 7 de Janeiro de 2017