25 de junho de 2015

“Os retornados reconstruíram Portugal” (Fernando Dacosta)



Dramaturgo, jornalista, formado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e galardoado com vários prémios, Fernando Dacosta é mais conhecido pelas suas obras sobre o Estado Novo. O DIABO entrevistou-o sobre a vida durante essa época, sobre a republicação da sua obra “Os Retornados Estão a Mudar Portugal” e o seu mais recente livro sobre Natália Correia.
O DIABO – Como surgiu a ideia de escrever sobre os retornados?
Fernando Dacosta – A questão dos retornados surgiu porque eu viajava muito pelo País e comecei a notar que, pelas estradas, havia muitos cafés novos com comida e música africanas e achei interessante. Contei isso ao Prof. Agostinho da Silva, com quem me dava muito bem, e ele disse: “Mas você ainda não percebeu que Portugal vai ser reconstruído pelos retornados”. Foi aí que decidi explorar esse fenómeno. Estava então no semanário “O Jornal”, que era mais de esquerda, e propus fazer essa reportagem. No entanto, o editor responsável, que era ferozmente anti-retornados porque achava que eles eram todos reaccionários, disse-me: “o sr. nem pense que se vai ocupar dessa cambada de fascistas”.

Mas isso não o deteve…

Eu não liguei nenhuma àquilo. Fiquei foi a pensar como é que havia de pegar no tema. Quando vi uma notícia no jornal a anunciar uma peregrinação dos ex-residentes do Ultramar a Fátima decidi lá ir. Encontrei umas quatro ou cinco mil pessoas, falei com várias e anotei os casos mais interessantes. Depois, nos fins-de-semana, nas minhas férias e à minha conta, juntamente com o cineasta Manuel Brito, andámos a percorrer o Pais todo e fizemos uma grande reportagem com as fotografias que ele fez. Esse trabalho ficou “na gaveta” à espera de Agosto, que é um mês terrível nos jornais porque está tudo de férias. Ora, nesse Agosto, esse editor anti-retornados foi a banhos e o que o ficou a substituir estava à rasca porque não tinha nada para meter. Aí, com um ar de sonso, abri a gaveta e mostrei-lhe a reportagem. Para ele foi um milagre, porque safou o jornal.
Quais foram as reacções?
Curiosamente, dois ou três dias depois, a BBC abre o noticiário principal com aquele tema. Isto porque o correspondente aqui percebeu a importância.
Como foi a integração dos retornados?
O poder político dessa altura fez uma política inteligente. Ao contrário do que fizeram os franceses, espalhou-os pelo País, de modo a que eles não constituíram um bloco. Então, dirigiram a sua raiva, a sua aflição e o seu desespero – porque, de facto, foi uma coisa monstruosa o que lhes aconteceu – para o refazer das suas vidas. Como era gente muito dinâmica e gente informada, a maior parte deles era muito mais apetrechada em termos escolares que a população daqui, começaram a ter êxito e a dominar. Curiosamente, tempos depois, passaram de subvalorizados a sobrevalorizados. Lembro-me que no distrito da Guarda havia, acho, doze câmaras nas quais dez eram presididas por retornados.
Traziam uma experiência de trabalho…
Esta gente, em África e no Brasil português, habituou-se a desbravar as coisas, construir impérios. Tinha o empreendedorismo, como agora se diz, estava-lhes na massa do sangue. Portugal, como previu, de facto, Agostinho da Silva, foi reconstruído por eles.
O termo retornados ainda é pejorativo?
Não, acho que não. O termo morreu, desapareceu. Ninguém mais falou em retornados. Curiosamente, agora, esse fenómeno começou de novo a surgir. Apareceram séries na televisão, por exemplo, “Depois do Adeus” está muito bem feita e o ambiente bem recriado.
Daí a reedição do seu livro?
Sim. Uma nova editora, a Parsifal, desafiou-me a pegar no livro que eu tinha publicado há trinta anos, actualizá-lo e lançá-lo outra vez. Nem tinha pensado nisso, mas foi uma boa ideia.
A crise actual aumenta o interesse do público por esse período?
É um grande fenómeno e as pessoas, nesta altura, olham para a frente e não vêem nada. Ninguém sabe o que é o futuro, o que vai ser. Então, há aquele impulso e voltam-se para o passado imediato. Têm curiosidade em saber. Até porque estes passado recente está muito mal contado e muito mal explicado. Para uns, a “longa noite do fascismo” foi o terror e para outros não foi. É o meu caso.
Como era a vida nesse tempo?
Lisboa era uma cidade divertidíssima. Os cafés estavam abertos até às quatro e cinco da manhã, havia um ar de festa, um ar erótico. Era um erotismo muito forte, transgressões, era uma coisa muitíssimo interessante.
Mas há quem se queixe de grande repressão…
Fico espantado quando vêm com isso. Não senti praticamente nada disso. Dizia mal do Salazar em todo o lado. Tive alguns problemas de ser levado pelas autoridades, mas isso fazia parte do processo. Eu não ouvia era dizer bem do Salazar ou do regime, mas ele não se ralava nada. Salazar repetiu mil vezes que preferia ser temido a ser amado. Ele não queria que gostassem dele, queria era que lhe obedecessem.
Hoje continua a ideia da “longa noite fascista”?
Foi um chavão que se pôs a circular e continuou. Acho muita graça ver aí pessoas com grande projecção que viveram e nasceram depois do 25 de Abril a contar como era a vida antes. Eu rio-me! Há que não levar isso muito a sério e a História reporá isso. Quando essa geração que veio do Estado Novo desaparecer toda, então começará a fazer-se uma História e uma visão mais precisa e mais justa do que foi. Há outra coisa, é preciso enquadrar no tempo estes fenómenos e estas figuras.
Descontextualizar não é sério. Analisa-se segundo os interesses de hoje.
É também um problema da historiografia que hoje trata o Estado Novo?
Os historiadores que hoje escrevem sobre o Estado Novo cometem um erro, que é: não têm em consideração os depoimentos orais, ou seja ir ouvir as pessoas que viveram esse tempo. Acham que o depoimento oral não tem credibilidade, só o escrito. Então, vão para as hemerotecas e para as bibliotecas consultar sobretudo os jornais da época. Mas esquecem-se de duas coisas. Primeiro, havia uma instituição que era a censura, que cortava os jornais. Segundo, os jornalistas, e falo por mim aldrabam bastantes (risos). Eu recordo as vigarices que se faziam nos jornais. Eu até inventava horóscopos no “Diário de Lisboa”, quando era preciso. Portanto, a credibilidade dos jornais faz-me rir. Para mim têm muito mais credibilidade as tais pessoas que viveram essas épocas e estão numa idade em que já não têm carreiras a fazer e têm até uma certa seriedade porque estão a chegar ao fim da vida. Em especial com os grandes vultos de então, com os quais eu felizmente convivi e fiquei fascinado.
Como por exemplo?
Como o Aquilino Ribeiro, o Jorge de Sena, o Almada Negreiros, a Fernanda de Castro e muitos outros. Pessoas que realmente passaram por essa época e tinham uma visão das coisas diferente e muito rica.
Independentemente do seu posicionamento político?
É preciso perceber uma coisa. As pessoas têm opções políticas, se o fazem por coerência, devem merecer o nosso respeito. Tenho muito mais admiração por muita gente que é de direita mas é coerente do que muita gente de esquerda que são uns farsantes. O Franco Nogueira, por exemplo, ou o António Quadros, são grandes vultos em Portugal.
Alguns desses vultos pertenciam ao regime…
O Estado Novo tinha figuras de altíssima qualidade intelectual, cultural e até humanista. É claro que funcionavam de acordo com a sua visão das coisas, mas funcionavam com seriedade. E isso, se nós somos democratas é básico.
Ultrapassa a classificação esquerda/direita?
São chavões. Irrita-me um pouco quando vejo aqueles indivíduos que se armam em bacteriologicamente puros de esquerda, por exemplo. Eu que nasci, fui criado e educado num regime como o Estado Novo, é óbvio que tenho que transportar essa influência que me foi incultada. É claro que eu e as gerações como a minha temos costelas de fascistas, costelas de oposição, costelas de esquerda e de direita. Depois tentamos é que predominem umas partes sobre outras. É um bocado ridícula essa argumentação com que se manipulavam as pessoas, atemorizando-as, etc. Do género “ai, tenho muito medo de ser acusado de fascista…”
Por dizer isso ainda lhe chamam “fascista”…
Eu quero lá saber que me chamem! Estou habituado a que me chamem comunista, fascista, eu sei lá… É para o lado que eu durmo melhor.
Duarte Branquinho
Fonte: Jornal o Diabo, 25 Fevereiro 2015