17 de fevereiro de 2013

O cu das faturas (Francisco Moita Flores)



O esforço recoletor de impostos recorda o xerife de Nottingham, que esbulhava os contribuintes.

O escrito de Francisco José Viegas sobre o sítio para onde manda qualquer fiscal que o intercetasse para saber se tinha fatura do café ou da pastilha elástica que acabara de comprar ergueu um coro de comentários jocosos e, pelo meio, os protestos dos beatos do costume, ora por causa da linguagem desapropriada, ora porque um ex-membro do governo não pode tecer críticas contra o executivo do qual fez parte. Como é habitual, discu-tiram-se formas e não o âmago da questão. A obrigação de um prestador de serviços é emitir fatura. Um consumidor tem direito a essa fatura. Justifica um gasto e pode, se o entender, fazer um histórico diário das suas despesas. Mas não tem o dever de exigir fatura.

Sobretudo quando esse consumo não tem reflexos na sua contabilidade, nem na relação que esta estabelece com o Estado através do aparelho de coleta das Finanças. Amarrar um consumidor ao dever de pedir fatura, pelas bagatelas do dia a dia, é conferir-lhe atos de controlo sobre o dever de outros, ou seja, fazer de cada cidadão/consumidor um polícia fiscal. Esta imposição torna-se mais ridícula se a levarmos até às últimas consequências. Ninguém imagina os fiscais, os tais que só podem realizar o ato de vigilância e praticá-lo em flagrante delito, a perseguir de olhar sobranceiro os milhares de putos que levam para a escola dinheiro para comprar um berlinde ou um gelado, um caderno ou um lápis. O que este esforço recoletor de impostos recorda é o desespero do xerife de Nottingham, que, pela força, sem olhar a meios, esbulhava os seus contribuintes com razias de medo e morte. A diferença é que não existe um Robin Hood.

Percebe-se a necessidade de acabar com as economias subterrâneas e paralelas. Um Estado justo não as aceita e combate--as. Porém, essa ação deveria começar pelos sítios onde em larga escala se foge aos impostos, desde as offshores, por onde passam milhões e milhões de euros clandestinos, até aos gigantescos mercados e feiras por esse País fora, onde faturas é papel quase desconhecido. O Francisco José Viegas deve estar divertidíssimo com a onda de indignações das viúvas oficiais. E como cidadão livre e de bons costumes tem o direito de proclamar a iniquidade desta decisão. Mandando-a meter em qualquer sítio. Mesmo que cheire mal. Os disparates não merecem tratamento assético.

Francisco Moita Flores, Professor Universitário

Correio da Manhã, 17 de Fevereiro de 2013