27 de novembro de 2011

Atrás da Máscara dos Banqueiros (Nick Dearden )


Atrás da Máscara dos Banqueiros

No contexto de mais uma crise financeira, as auditorias à dívida poderiam ser uma forma de contrabalançar o poder da grande finança. Nick Dearden apresenta na Red Pepper um dossier especial.

A crise económica levou os activistas de países como a Grécia e a Irlanda a olhar para os países em desenvolvimento à procura de modelos para a luta contra um sistema financeiro todo-poderoso e egoísta, que força as pessoas a pagar o preço dos seus erros. De Dublin a Harare os apelos a «auditorias à dívida» têm-se constituído como um primeiro passo vital para a educação e mobilização das pessoas contra o sistema financeiro injusto que beneficia a minoria à custa da maioria.

Nick Dearden apresenta aqui a história e significância da campanha para as auditorias à dívida e em seguida Alan Cibils da Argentina, Maria Lucia Fattorelli do Brasil e Andy Storey da Irlanda expõem as suas próprias experiências de auditorias à dívida e de incumprimento e exploram as lições para os activistas de justiça económica.

Terminou a primeira onda da crise bancária. Os bancos passaram com sucesso as suas perdas para o sector público e os seus lucros voltaram a «enriquecer». Agora esperam que os governos repitam o truque. A Grécia, a Irlanda e Portugal estão a sofrer políticas de «ajuste estrutural» para que o dinheiro público continue a derivar para as instituições cujo comportamento é responsável pela crise económica global.

Por toda a Europa, mas sobretudo na Grécia, as pessoas estão a revoltar-se — não apenas para discutir «quem paga a factura.» Estão envolvidos numa luta pela democracia no seu verdadeiro sentido, por um sistema económico baseado num conjunto de valores radicalmente diferentes. E usam os modelos dos movimentos sociais desenvolvidos nos países do sul para dar início ao processo necessário de educação e empoderamento.

Responder à tirania com conhecimento

Uma das ideias que alimenta a imaginação dos activistas na Grécia e na Irlanda é a de uma «auditoria à dívida» para abrir as finanças dos seus países ao escrutínio e análise públicos. A conferência de lançamento em Maio em Atenas teve centenas de pessoas na plateia e uniu uma grande parte da esquerda grega, até então seriamente fracturada. Entretanto o mesmo apelo foi seguido por activistas na Irlanda e tem gerado interesse em Espanha, Portugal e até no Reino Unido.
Sofia Sakorafa é uma deputada grega dissidente, antigo membro do governo grego, que saiu do partido depois de se recusar a assinar o primeiro pacote de «resgate» em 2010. Ela acredita que «a resposta para a tirania, a opressão, a violência e o abuso é o conhecimento» — de como a crise se instalou, o que os gregos estão a pagar e a quem, o que irá ajudar a convencer as pessoas da corrupção moral do actual sistema financeiro e reacender um sentido de poder sobre a sua economia.

Sakorafa tem a certeza de que esta é uma batalha por valores diferentes: «Além dos jogos de mercado especulativo, há conceitos mais importantes. Há as pessoas, a História, a Cultura, a decência.» A crise não ficará resolvida com apenas uma lei, mas sim por uma transformação de como os indivíduos e as comunidades se relacionam com o poder.

A história da auditoria à dívida

A ideia da auditoria à dívida veio de activistas do Sul com décadas de experiência na luta contra a opressão das suas sociedades pelos interesses financeiros do Norte. Afinal, os problemas actuais da Europa são a repetição de uma velha história. O controlo do sistema financeiro a nível nacional e internacional era uma preocupação chave para John Maynard Keynes, depois de ter observado o impacto do «governo dos bancos» na Grande Depressão dos anos 30. Keynes acreditava em políticas que viriam encorajar a «eutanásia do rentista» através da intervenção governamental e do controlo da finança.

Desde que esse sistema de controlo desapareceu nos anos 70 a economia mundial tem sofrido crise após crise, desde a crise da dívida latino-americana dos anos 80 ao colapso cambial da Indonésia e Tailândia em 1997 e à crise económica da Argentina no início do século XXI. Para as instituições financeiras sedeadas no norte a dívida foi um meio de expansão do sector financeiro. As pessoas responderam a cada momento de crise lutando — não com propostas políticas específicas para uma forma mais suave de controlo financeiro, mas repudiando da dívida dos seus países e mandando embora as instituições internacionais que impõem a austeridade.

Na verdade, o argumento a favor de uma auditoria é apenas um apelo à transparência. Se estas dívidas são «nossas», então o mínimo que podemos querer é saber o que estamos a pagar. Mas o seu impacto é muito mais profundo. Nas palavras do activista irlandês Andy Storey, uma auditoria pode «remover a máscara do poder financeiro que puxa os cordelinhos da nossa economia e, portanto, da nossa sociedade.» Isto assume particular importância em países que viveram em regime ditatorial, desmascarando a forma como os credores internacionais apoiaram o regime ilegítimo. Mas, mesmo nas sociedades europeias, cava fundo nas ligações entre o poder e a finança, desvelando como e em prol de que interesses funciona a economia.

A maioria das auditorias à dívida foram feitas num orçamento muito limitado, utilizando informação que pode ser obtida através de mecanismos de liberdade de informação e outras investigações. A Auditoria Cidadã à Dívida Brasileira foi em 2001 a primeira de tais iniciativas. Em 2006, o Presidente Correa tornou o Equador no primeiro país a fazer uma auditoria oficial, declarando que «a minha única dívida é para com as pessoas.» Apesar do apoio presidencial a auditoria foi uma tarefa hercúlea, que se deparou com constantes resistências por parte de funcionários públicos indisponíveis para desmascarar os segredos dos regimes anteriores.

Em 2008 a comissão de auditoria relatou «danos incalculáveis» causados pela dívida à sociedade equatoriana. Descobriu vários empréstimos ilegais, inúteis e extorsionários que tinham sangrado os últimos recursos do país. Correa apenas deixou de cumprir a parte mais dúbia da dívida — um conjunto de títulos. A própria revista The Economist apelidou Correa de «incorruptível» quando a despesa pública subiu em consequência.

Os activistas, no entanto, queriam que ele fosse bem mais longe no repúdio de dívidas. Este é um dos problemas destes processos de mobilização quando são apoiados pelo Estado, e que também trouxe desapontamento para os activistas brasileiros e argentinos, quando as promessas não se traduzem em maiores transformações na economia. Outras auditorias oficiais mais pequenas foram iniciadas, mas não levadas a cabo, na Argentina e nas Filipinas e duas outras prometidas no Nepal e na Bolívia.

Entretanto, no Zimbabué, os activistas trabalham numa auditoria que mostre o papel dos empréstimos do FMI, do Banco Mundial e dos governos do norte no aparecimento da crise naquele país. Quando o Zimbabué tiver ultrapassado o regime de Mugabe, terá que fazer face a uma nova onda de empréstimos do FMI com o correspondente controlo da economia. A auditoria à dívida é um primeiro passo para desafiar este controlo.

Alguns vêem as auditorias à dívida como «reformistas» — de certeza que a única resposta radical para um país é simplesmente deixar de pagar as suas dívidas? Na verdade, não é assim tão simples. Um incumprimento não é forçosamente progressista — por exemplo, os de Mugabe no Zimbabué ou os de al-Bashir no Sudão. Repudiar ou incumprir podem ser a melhor opção, política e economicamente, mas não é isenta de custos. A população de um país terá que enfrentar as dificuldades e o isolamento que daí advém com muita probabilidade. Um entendimento prévio é uma condição essencial.

As pessoas não podem ser levadas a um incumprimento com a convicção falaciosa de que «tudo voltará ao normal.» As coisas podem mesmo piorar. Depois de votar na recusa dos termos britânico e holandês para o pagamento da dívida do seu país, o islandês Thorgerdun Ásgeirsdóttir de 28 anos disse: «eu sei que isto nos vai talvez afectar internacionalmente, mas vale a pena arriscar.»

Um tal entendimento é também necessário se um incumprimento for um primeiro passo genuíno para uma mudança mais ampla. A Argentina foi protagonista de um dos maiores incumprimentos da história em 2001, depois de anos a seguir os conselhos do FMI. Economicamente funcionou — a economia começou a recuperar rapidamente. Mas muitos activistas lamentam que o governo argentino não tenha aproveitado para criar uma forma diferente de desenvolvimento económico. Apesar do crescimento rápido, a pobreza mantém-se nos 30%, a desigualdade é alta e a maioria continua a sofrer com uma forma de «desenvolvimento» baseada na dívida.

Auditorias na Europa

A dívida na Europa tem claras diferenças relativamente à divida no sul. Apenas uma pequena parcela da dívida europeia actual foi contraída por regimes ditatoriais e o pagamento dessa dívida não irá conduzir a níveis de sofrimento semelhantes aos dos países pobres. Mas questões como a redistribuição da riqueza e do poder, quem controla a nossa sociedade e quem paga a conta da acumulação de poder são as mesmas em toda a parte.

O que é que a auditoria grega espera descobrir? Costas Lapavitsas, o académico e activista grego, disse que não tem a certeza de que a maior parte da dívida grega seja legal, «sobretudo tendo em conta que foi contraída em contravenção directa dos tratados da UE, que declaram que a dívida pública não deve exceder 60% do PIB» — algo de que os credores estavam perfeitamente cientes. Alguma da dívida grega foi disfarçada pela Goldman Sachs para esconder a verdadeira extensão do risco da Grécia. De acordo com Lapavitsas, o próprio pacote de resgate não foi contraído de acordo com os supervisão parlamentar normal.

Na Europa estamos a viver numa sociedade em que os interesses financeiros capturaram os nossos governos, controlam as nossas economias e dominam cada aspecto das nossas vidas. Capturaram até a própria noção que temos de democracia — sem atenção ao facto de que numa sociedade com desigualdade de riqueza crescente, onde os banqueiros puxam todos os cordéis, não pode existir uma verdadeira democracia. A luta pela democracia política não pode esperar vingar enquanto se mantiver separada da luta pela democracia económica. As auditorias à dívida são uma forma de ver a democracia de forma mais integrada. A sua adopção poderia ajudar a abrir caminho para uma genuína ruptura com as políticas económicas falhadas no passado.

Mais informação:

Jubilee Debt Campaign

Campanha para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo (em Francês e Inglês)

Tradução de Helena Romão
17 de Novembro de 2011

http://auditoriacidada.info/article/atrás-da-máscara-dos-banqueiros