12 de junho de 2010

Alfabeto para combater a pobreza – T como Trabalho

Alfabeto para combater a pobreza – T como Trabalho

Há quem diga ser possível trabalhar sem resultados; o que raramente acontece é ter resultados sem trabalho. Aí está: trabalho. A palavra trabalho é uma das mais maltratadas do nosso vocabulário social. No tempo colonial já serviu para definir o que era necessário fazer para que pudéssemos ser aceites como humanos. O empreendimento colonial português ganhou uma boa parte da sua coerência graças à regulação do chamado “trabalho indígena” encetada sob orientação lúcida de António Enes. Através desta regulação foi possível não só redefinir institucionalmente o africano como alguém preguiçoso, vivendo da exploração do trabalho da mulher (curiosamente, o mesmo argumento que alguns programas da indústria do desenvolvimento de vez em quando usam) e pouco previdente, como também criar as bases para o estabelecimento do aparelho estatal colonial.
Em tempos mais recentes, isto é logo após a nossa independência, a noção de trabalho serviu para explicar porque tínhamos sido colonizados – expansão colonial-capitalista asssente na exploração do homem pelo homem – e o que era necessário para darmos substância à nossa independência. Segundo os ideólogos da altura o que era necessário era que destruíssimos todo o tipo de relações sociais que pudessem encerrar dentro de si a possibilidade de homens explorarem outros homens. Alguma da análise social feita nessa altura procurava, consequentemente, por indícios de relações feudais ou capitalistas na nossa estrutura social que, nos documentos sofisticados do Departamento para o Trabalho Ideológico, eram denunciadas como sendo reaccionárias e precisando de acção imediata.

Agora a noção de trabalho tem apenas uma existência assim-assim. Na indústria do desenvolvimento é apenas uma categoria residual que serve, por vezes, apenas de entretenimento para que as pessoas não pensem que a comida que lhes é oferecida vem de borla. Refiro-me aos programas “comida pelo trabalho”, veículos importantíssimos da condução do nosso país a uma espécie de economia da idade da pedra. Porque não pagam salários às pessoas e deixem que elas decidam se querem a comida oferecida ou, pelo contrário, preferem comprar uma 2M (que também tem calorias)? No governo a noção de trabalho é um grito de guerra utilizado por fiscalizadores altamente zelosos no controlo de quem tem licença de trabalho, mas algo apáticos em relação à criação de empregos.

Recentemente li uma crónica de Machado da Graça que aconselhava o MDM a adoptar a democracia social como forma de produzir uma alternativa credível à Frelimo e mais próxima da orientação política duma considerável parte dos nossos doadores. O conselho pareceu-me típico da qualidade analítica da nossa esfera pública: o rótulo parece ser mais importante do que o conteúdo. E o problema, na realidade, não é apenas de procurar pelo posicionamento político que melhor alternativa oferecerá aos outros partidos, mas sim de identificar uma perspectiva a partir da qual se torna possível uma análise dos problemas do país na óptica de grupos sociais bem definidos. Uma boa parte do movimento social democrata europeu (exceptuando o partido social democrata português que é, neste aspecto, uma aberração) é o resultado ou das lutas sindicais ou do empenho de certos sectores da sociedade pela melhoria da condição dos trabalhadores. Para que daí surgisse um programa político coerente foi necessária uma análise do trabalho, sua ligação com a sociedade e articulação com o político.

Ou por outra, uma abordagem social democrata dos nossos problemas não é um expediente político, mas sim um compromisso com uma certa perspectiva analítica. Em minha opinião faz-nos falta, portanto, uma abordagem da pobreza alicerçada na noção de trabalho que nos poderia revelar os problemas do país noutras ópticas e que incutiria novas dinâmicas ao trabalho do Ministério do Trabalho.

E. Macamo
Maputo, Quarta-Feira, 28 de Abril de 2010:: Notícias