11 de junho de 2010

Alfabeto para combater a pobreza – E como Emancipação

Alfabeto para combater a pobreza – E como Emancipação

Eu sempre associo a noção de emancipação não só à liberdade individual – que é importante – mas também a um melhor conhecimento da condição humana. Não é, de resto, à toa que a noção de emancipação aparece associada ao que é chamado de Iluminismo na Europa. Este momento histórico está profundamente ligado à soltura da verdade das garras ciumentas da razão obscurantista das instituições religiosas. Espero que o leitor não me entenda mal. Não estou a dizer que a igreja em si era obscurantista – embora fosse, e continue a ser, até um certo ponto – mas sim que a prerrogativa que ela reclamava para si própria de determinar pela graça conferida por Deus ao clero – segundo o próprio clero! – o que constitui a verdade ou não, tinha feito a sociedade humana refém do poder religioso. Emancipação, nesse contexto, significava não só a prerrogativa de cada um de nós de procurar a verdade como também o questionamento da prerrogativa de outrem de ser o detentor da verdade.
É pobre o indivíduo que não desfruta a emancipação neste sentido. Na verdade, se analisarmos bem o pensamento por detrás da definição qualitativa da pobreza – que se inspira no pensamento de Amartya Sen, prémio Nobel de economia – veremos que ela assenta sobre ideias profundamente alicerçadas nos pressupostos do Iluminismo. Quando Amartya Sen sugere que sejamos definidos pelos direitos que fazem de nós membros da comunidade política e pelas capacidades de que precisamos para podermos usufruir de tudo que daí advém o que ele está a sugerir é, em minha opinião, esta ideia essencial da emancipação, nomeadamente que só podemos viver livres da pobreza se gozarmos da prerrogativa de apreender o mundo com os nossos olhos e de questionar aqueles que se arrogam a prerrogativa de tecer as considerações finais sobre a verdade.

E se calhar é deste tipo de discussão que precisamos de ter na nossa reflexão sobre a pobreza. Alguns vão logo gritar que isso é querer discutir o sexo dos anjos enquanto a cidade arde. Sim, é, mas é também importante. Quem grita isso é aquele que acha poder determinar o que é importante e pertinente na base daquilo que ele sabe e que eleva ao estatuto de verdade absoluta. E é contra esses sabichões que a luta contra a pobreza deve ser conduzida. Sim, a luta contra a pobreza, pois a pobreza, no contexto da emancipação, deixa de ser uma questão meramente material para ser um desafio sério de reflexão sobre o que sabemos, as condições que são necessárias para que saibamos e, naturalmente, os critérios de que precisamos para estabelecer a plausibilidade das nossas conjecturas.

A emancipação como ponto de partida para a abordagem do problema da pobreza teria, portanto, duas vertentes. Uma seria a sobejamente conhecida, nomeadamente do desafio aberto e questionamento militante – como eu o faço – da prerrogativa da indústria do desenvolvimento de determinar para nós o que constitui seriedade no combate à pobreza. Estou até a imaginar o Ministério da Planificação e Desenvolvimento a reescrever o PARPA para incluir a emancipação como eixo central de toda a abordagem. A outra vertente é o questionamento da prerrogativa do Governo de determinar que tipo de pobreza merece a atenção da sociedade e, acima de tudo, de impor o seu combate como critério de seriedade nos planos individuais ou colectivos de vida.

No fundo, vista do ponto de vista da emancipação a pobreza deixa de ser uma mera questão de caridade. Na verdade, ela passa a ser o principal obstáculo à realização da cidadania, condição “sine qua non” da viabilidade do nosso sistema político. Espero que esteja a ficar claro o alcance profundo da articulação da pobreza com a emancipação. Ela suscitaria um debate político na sua essência, debate esse que procuraria identificar as condições de libertação de cada um de nós das pretensões arrogantes daqueles que pensam saber o que é bom para nós. O critério já não seria de saber quantos alunos têm acesso à escola, mas sim quantos moçambicanos têm a ousadia do conhecimento como teria dito Immanuel Kant, o grande filósofo alemão. Quantos moçambicanos estão em condições de discutir com o seu médico ou enfermeiro a utilidade da sua medicação? Combater a pobreza podia ser isso mesmo.

E. Macamo (2010)
in Notícias co.mz