11 de junho de 2010

Alfabeto para combater a pobreza – C como Comunidade

Alfabeto para combater a pobreza – C como Comunidade

Uma das imagens mais bonitas e impressionantes do nosso país é-nos proporcionada aos domingos de manhã. A gente vê nas cidades e nas zonas rurais filas e filas de gente vestida da mesma maneira com diferenças de cor que marcam a pertença a diferentes igrejas. Não sou religioso, nem acho a religião particularmente útil para seja o que for, mas essas pessoas impressionam-me. Elas documentam um momento bastante particular da nossa condição humana que consiste na vida em comunidade. Não somos nómadas, mas sim gente que vive em comunidade. Somos gente que partilha a tristeza, a alegria, a esperança, a riqueza e a pobreza com outros. Essas coisas todas ganham sentido no contexto da vida com outros. Mesmo aquele que quer gingar só o pode fazer, e tirar satisfação daí, com referência a uma comunidade.
Ao mesmo tempo, porém, somos uma sociedade assolada por problemas que revelam a fragilidade desse sentido comunitário. É, por exemplo, nos bairros, onde se verificam os maiores índices de assaltos às residências, os maiores índices de insegurança em relação aos telefones celulares e carteiras, os maiores níveis de imundície, etc. Já lá vão os tempos em que o único problema digno de registo na convivência com outros era o roubo do gato por uma tal Rosinha para lhe fritar os bifes com alho e vender no “Ponto Final”.

Reparem que até nem era difícil saber que tinha sido a Rosinha a fazer isso. Hoje a gente nem se conhece, reduzidos como estamos, à luta de todos contra todos. É uma sensação estranha: quanto mais gente à nossa volta, mais isolados nos sentimos, mais sozinhos estamos porque qualquer um desses que nos rodeiam pode ser um potencial ladrão, assaltante e batedor de carros. Dantes saíam futebolistas, académicos e profissionais desses bairros; hoje saem só mecânicos com inclinação para arrancar à força e com pistola o que não lhes pertence.

Temos, portanto, um problema de comunidade, mas não aquela comunidade ordenada de cima ao jeito da polícia comunitária do Ministério do Interior ou dos comités de bairro, moradores e de quarteirão dos tempos que já lá vão. Temos um problema de comunidade genuina fruto da vontade de cada um de partilhar as suas tristezas e alegrias com os outros. Porquê não colocar este problema no centro da nossa agenda política? Por que não dizermos que queremos reforçar o sentido comunitário entre nós e incluir na nossa definição de comunidade um conjunto de deveres e obrigações, mas também de direitos? Estou a pensar, por exemplo, no dever de velar pela limpeza dos espaços comuns, integridade dos bens comuns, ajuda aos necessitados, protecção aos fracos, reforço da capacidade comunitária de suster golpes do destino – acidentes, calamidades naturais – enfim, o dever de ser membro responsável da comunidade.

O que seria da definição da pobreza nestas circunstâncias? Seria ainda a mesma definição daqueles que nos querem ajudar? Não creio. Primeiro, uma definição da pobreza derivada do sentido de comunidade havia de ter maior respeito pelos valores locais e seus sistemas de recompensa daquele que se esforça por ser membro responsável. Segundo, afastava significativamente o Estado da equação, o que seria bom, pois um dos nossos maiores problemas políticos é esta tendência de pensarmos que problema só é problema quando é assunto a ser tratado exclusivamente pelo Estado. Terceiro, uma tal definição começaria a delimitar bem as fronteiras do que é uma intervenção legítima na nossa vida e do que é pura ingerência e ignorância. Não nos esqueçamos que a força da democracia americana, pelo menos historicamente, vem da importância da comunidade, razão pela qual, provavelmente, os americanos estão-se nas tintas para o que acontece no mundo. Igualmente, aqueles que acompanham a evolução religiosa do nosso povo vão saber que igrejas como a Presbiteriana, Metodista e outras do seu género, isto é do género que não estão à caça do dinheiro de fiéis incautos, nos tempos que já lá vão neste nosso Moçambique só aceitavam criar uma paróquia e indicar um pastor se a comunidade tivesse meios de pagar o salário do pastor. É só o leitor comparar esse pequeno pormenor com os carnavalescamente indumentados “líderes comunitários” dos nossos tempos para ver o verdadeiro alcance da pobreza no nosso país.

E. Macamo (2010)
in Notícias.co.mz