15 de fevereiro de 2009

A questão do tempo em Terra sonâmbula (Michel Lima Gonçalves)

A questão do tempo em Terra sonâmbula (Michel Lima Gonçalves)
Universidade Federal Fluminense Se houvesse uma linha infinita, ela seria uma reta, um triângulo, um círculo e uma esfera. Da mesma maneira, se houvesse uma esfera infinita, ela seria um triângulo, um círculo e uma linha. Nicolau de Cusa Antes de mais nada, gostaríamos de tomar de empréstimo algumas afirmações da física e da matemática para exemplificarmos o discurso: 1a- - duas retas paralelas se encontram no infinito; 2a- - todo segmento de reta faz parte de uma curva de uma circunferência maior no infinito; 3a- - o círculo é uma figura geométrica perfeita, porque não há emendas. O nosso estudo analisará a questão do tempo no romance Terra Sonâmbula, partindo das noções de tempo retilíneo e de tempo cíclico. O Tempo Cristão - A Linha e o Tempo Antigo - O Círculo O mundo antigo cria em uma concepção naturalista do tempo e da história, na qual espelhavam-se nas mudanças cíclicas das estações, na alternância entre dia e noite , dando um caráter repetitivo ao tempo. Havia mudanças mas não havia novidades. Foi o cristianismo que, contrapondo-se ao mundo antigo, pagão, mudou esta concepção. Em vez do círculo, temos a linha. Os teólogos cristãos, sobretudo Agostinho, baseados na tradição judaico-messiânica, deram um novo sentido ao tempo e à história. O mundo passava a ter um princípio – o passado – que apontava para o fim dos tempos – o futuro. A criação do mundo é a origem de tudo e o que decorre dela em diante concorre para o juízo final. O passado, o presente e o futuro foram ligados em uma seqüência compreensível, que não é simplesmente cronológica, mas sobretudo teológica. Nesta concepção cristã, o tempo é retirado da esfera natural e é humanizado, mesmo que com orientação divina. É mostrado como linear e irreversível, ao contrário dos ciclos e recorrências do pensamento antigo. "Assim contrariamente as filosofias helênicas, que concebiam o tempo fechado num círculo sem saída e sem fim. O cristianismo atribui ao tempo o máximo de potencialidades e significação."(Bignotto, 1996: p. 180.) O mundo clássico acreditava no caráter cíclico da história e do tempo. Fortuna, deusa romana, era o rosto que fazia girar o ciclo da história. A Fortuna cumpria uma lei da qual não se pode escapar. Ela fazia girar a roda que estava em seu poder, mas não criava algo de novo, uma vez que o mundo está condenado à eterna repetição. A Fortuna não era como a Providência divina, uma intervenção de Deus nos negócios humanos, guiada por uma escatologia. Seus atos refletiam apenas a circularidade do tempo, mas deixavam aberta a porta para que os homens tentassem vencê-la. O Tempo em Terra Sonâmbula O romance de Mia Couto é composto de duas narrativas que, a princípio, possuem tempos distintos e lineares. Há um ponto de partida que desencadeia os fatos que compõem o romance: o machimbombo queimado. A 1a- narrativa - a de Tuahir e Muidinga – a ação é mais lenta, pois a terra é sonâmbula, está em transe, a sonhar, como se esperasse um novo tempo no qual a terra renasceria.: "Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. ( ... ) A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. ( ... ) Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. ( ... ) Vão para lá de nenhuma parte , dando o vindo por não ido, à espera do adiante. ( ... ) Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranqüilo." ( Couto, 1995: p. 9 ) A guerra "mata" a terra e faz com que os locais tornem-se estrangeiros em seu próprio território. Muidinga e Tuahir, traçando-se um paralelo com Vidas Secas de Graciliano Ramos, são retirantes. Mas ao contrário da família da Fabiano e Sinhá Vitória, não fogem da seca, seu inferno é outro: a guerra . Como diz o Velho Taímo pelo relato de Kindzu, lido pela voz de Muidinga: "a guerra é uma cobra que usa nossos próprios dentes para nos morder." (COUTO, 1995: p. 19). Mas a terra na verdade não está morta, ela se encontra em um estado letárgico, em um coma. É a forma de sucumbir. É o transe, o sonambulismo que faz com que a terra se movimente lentamente. Não são as personagens que viajam pela terra , mas sim esta que está a caminhar: "À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões."( p. 121 )1 O tempo nesta narrativa, assim como na terra, movimenta-se lentamente, quase parado. Tuahir e Muidinga estão vivendo em um eterno presente, onde não há muita perspectiva de um futuro. É um tempo a deriva. Porém, a narrativa composta pelos Cadernos de Kindzu possui um tempo que movimenta-se mais rápido. É o passado - pois os relatos de Kindzu já aconteceram antes do tempo de Muidinga e Tuahir - que caminha freneticamente para o futuro. O tempo da memória. Esta é quem constrói a rede onde todas as histórias se articulam entre si. Ou seja, ela origina "a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração." ( BENJAMIN, 1988: p. 211 ). Dialogando com o passado, Kindzu torna-se o presente e confunde-se com ele: "Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a história, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz." ( p.17 ). Como diz Alfredo Bosi, "a memória vive do tempo que passou e, dialeticamente o supera."( p.27 ). Pois recorda-se agora o que viu-se outrora, criando a idéia do tempo reversível. Este concebe o tempo como seqüência, que é suprimida enquanto o sujeito rememora o passado, ou seja, vive a simultaneidade entre o antes e o agora. A memória e o tempo reversível abrem caminho para outra noção de temporalidade encontrada no romance: o tempo mítico. O sonho é porta para chegar-se a esta percepção temporal: "Só recordo esta inundação enquanto durmo. Como tantas outras lembranças que só me chegam em sonho. ( p. 24 ). O Tempo Mítico Nas sociedades africanas os velhos exercem um grande papel, são eles que detêm a sabedoria, conhecem a história de seu povo. Eles transmitem seus ensinamentos aos mais jovens. Ao contar suas histórias, resgatam através da memória toda a vivência dos antepassados. O contato com os velhos, contadores de histórias, permite que haja transformações para além da realidade física, diferentemente das sociedades ocidentais nas quais o tempo é retilíneo e as transformações, o campo das mudanças está reservado ao futuro. Nas sociedades africanas, ou em quase todas, não existe a noção de futuro. A transformação acontece de forma simultânea entre o tempo real e o tempo ideal. Como dois mundos superpostos – o da ancestralidade, do tempo mítico, e o mundo real, do tempo sensorial - coexistindo. E a ponte para estes dois mundos é feita pelos velhos: "... a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos."(p.18). E este mundo mítico, da ancestralidade é habitado por espíritos dos antepassados, por seres que estiveram entre os viventes e que ao passarem pela morte não perderam sua autoridade. Pelo contrário, aquela legitima esta, pois agora todos que passaram pela morte fazem parte da tradição e podem ser invocados a qualquer momento. É como diz Bosi: "Os espíritos dos antepassados podem reaparecer quando chamados pelos crentes, porque tudo aquilo que eles foram não desapareceu: existe ainda agora, continua vivo. Os séculos não destruíram as entidades que neles viveram: o tempo ontológico dos espíritos está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de epifania." ( BOSI, 1996: p. 29 ) O Círculo e a Linha Chegamos a terceira noção temporal presente em Terra Sonâmbula: a circularidade. No início deste estudo vimos que o ponto de partida deste romance é o machimbombo incendiado, e que o texto de Mia Couto é composto de duas narrativas. A 1a- narrativa possui um ritmo mais lento que a 2a- narrativa. Mas as duas caminham com suas histórias e tempos, como duas retas paralelas caminhando para o infinito é o final do romance, pois as duas narrativas se encontram. Quando Kindzu em sonho vê sua morte e avista Gaspar e o machimbombo, voltando ao ponto de partida do romance, fecha-se o círculo. A reta narrativa que compõe o romance é na verdade parte de um círculo maior que tem como ponto de partida o já referido autocarro, mas que poderia ser outro ponto qualquer dentro da história, pois o círculo, fechado em si mesmo, não possui emendas, podendo-se escolher qualquer lugar para se percorrer sua circunferência. Assim como o diretor macedônio Milcho Manchevski faz seu filme Antes da Chuva, no qual conta-se três histórias, tendo como início do filme uma foto de um jovem monge sentado. Esta cena irá ser retomada ao final do filme, mas não como uma fotografia, mas como uma cena real, sendo que não se trata de um flashback, mas de uma cena que aconteceu "a posteriori". Mia Couto faz o mesmo com seu romance, ou seja, "brinca" com a noção de temporalidade, recuperando ao final do livro o seu início, mas que já não é o mesmo porém outro. Bibliografia: BENJAMIM, Walter. O narrador. In: Obras Escolhidas. Vol.: I, 4a ed. São Paulo:Brasiliense, 1988. BIGNOTTO, Newton. O círculo e a linha. In: NOVAES, Adauto (org.) Tempo e História. 2a- ed. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura / Companhia das Letras,1996. BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (org.) Tempo e História. 2a- ed. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/ Companhia das Letras, 1996. COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. GONÇALVES, Michel L. .Mia Couto: a oralidade construindo o literário. Comunicação apresentada no VIII Congresso da ASSEl, Rio de Janeiro, novembro de 1998. KUMAR, KRISHAN. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra. Niterói: Eduff, 1995. Notas: 1. A partir desta passagem do romance de Mia Couto quando nos referirmos a ele indicaremos apenas a página sem dar a indicação bibliográfica.